Descaramento Inicial

Esta exposição não foi organizada com propósitos filantrópicos e muito menos com a intenção de distrair professores em férias, antropólogos aposentados, mecenas falidos ou eruditos d’arte. Conscientemente não foi este meu desejo nem minha intenção. Pelo contrário, a fiz, em primeiro lugar, porque precisava pintar as paredes de minha casa e em segundo, para que essas efígies, afinal, se distraiam um pouco com o espetáculo da vida, com a mascarada sem fim das massas entediadas e com o torpor incurável que os visitadores de museus, de igrejas e de palácios encarnam.


Aborrecidas e visivelmente indignadas de tanto permanecerem penduradas estas 300 relíquias profanas, vindas das mais variadas regiões do mundo, obrigaram-me a exibi-las a pessoas que nunca vi, que não conheço e que não me darão nada em troca por isso. Mas não pude furtar-me a esse pedido porque são elas –e mais ninguém que, além de zelar pelo meu sono, governam minha vida, organizam minha agenda, me protegem de todos os truques da existência e me apontam com antecedência os mais sutis e perigosos obstáculos do cotidiano. Assim, antes mesmo que as chuvas de fevereiro chegassem, fui delicadamente retirando uma por uma de seus pedestais e com uma toalha branca de linho e impecavelmente limpa, eliminando a poeira e as teias de aranha que o tempo –esse monstro aterrador- foi depositando sobre os olhos, a boca, o nariz, os chifres, a língua e as orelhas de cada uma, inclusive sobre uma inscrição minúscula, talhada na parte inferior de uma delas que diz: “Oh alma divina! Líbrame del Espíritu de cara espantosa que se apodera de los corazones y arrebata los miembros!”[1]


A que tenho nas mãos neste exato momento, foi adquirida de um camponês na Cidade do México; esta outra, comprei de uma família em Oaxaca; pela que está mais abaixo, com um chifre quebrado, paguei apenas alguns pesos numa taberna de Guerrero. A verde com olhos brancos, consegui junto a uma autêntica feiticeira de Huautla, ainda quando Maria Sabina estava viva. Apesar de parecer dar preferência às mexicanas também estou atento às que estão na outra parede, quase junto ao umbral, onde ficam as nepalesas, as da Birmânia, as da Thailândia, da China, da Costa do Marfim, Japão, Colombia, Peru, Bulgaria, Grécia, Amazonas, Índia etc. Enquanto as manuseio, sinto que seus olhares me lançam vertiginosamente de um extremo a outro do globo, da terra, das culturas e dos subterrâneos gélidos das seitas, como se fosse um fantoche e um palhaço nas mãos de fantasmas inconscientes que não sei como domar e nem fazer-me obedecer. Quanto mais procuro estabilizar-me, mais tenho a sensação embriagadora de estar sendo lançado para além da trilha melancólica por onde se arrastam os atores do espetáculo moribundo da vida sedenta(ria). O que mais admiro nelas é que parecem não desejar coisa alguma e que, ao contrário do que dizia Barthes, são de natureza impura e levam em si todos os estigmas que conhecemos. Por um lado sei que estão mortas, mas que estão vivas e por outro, percebo que estão vivas, mas sei que estão mortas… Nunca fui, não sou e jamais serei um colecionador! Mas se por maldição ou por necessidade chegasse a sê-lo um dia, colecionaria máscaras. Primeiro porque gosto de ver estas caras cínicas estampadas na madeira, no bronze ou no ferro… e segundo, porque quem coleciona máscaras rapidamente deixa de se espantar com as patifarias dos homens. As fui adquirindo durante anos e não são –como gostam de dizer os especialistas- originais. Isto é, não são máscaras autênticas, aquelas usadas ritualisticamente por seus construtores, feiticeiros e xamãs, pelas quais os donos de museus e outros snobes pagam fortunas ou fazem de tudo para rapiná-las de seus países de origem. As deste acervo são meras cópias, reproduções, peças feitas para o comércio turístico que contaminou o mundo… Em outras palavras: são máscaras falsas ou falsas máscaras, imitação vulgar para decoração de clubes carnavalescos ou de moradias laicas. E esta é a verdadeira razão de meu interesse, pois acredito que só elas, as falsas, são realmente malditas, impregnadas de poderes ocultos e de encantamentos demoníacos… Pois elas, além de possuirem as mesmas raízes das máscaras ritualisticas-originais, ainda levam em si as raízes do mau-caratismo dos comerciantes, a maldição da semelhança, do dinheiro e do engano. E depois, ser «falsa» ou «original» é muito relativo, pois sei de nativos no Nepal, em Bali, no México ou na África que, para enganar os clientes, envelhecem astutamente a madeira, o metal, o marfim e as pedras usadas na sua construção, dando à peça uma impressão de relíquia secular. E os doutores/pesquisadores, caindo no primeiro truque e na primeira maldição da ganância e da máscara as compram como tal. Curiosamente, tenho uma atração por tudo o que é falsificado e em especial pelas máscaras que foram adulteradas, re-inventadas, degeneradas, «colonizadas», postas a serviço do capitalismo informal e da globalização. Para mim cada uma delas parece revestida de um poder mágico mais potente e sedutor, parecem mediar com mais competência as transações entre os espíritus invisíveis e subjugar com maior eficiência o indivíduo demente ao êxtase místico… Se a máscara é realmente como a definiu Carl Einstein “um êxtase imóvel”, não restam dúvidas de que esse êxtase é mais profundo na presença da máscara bibelot, da máscara imitação, da máscara blefe-universal. E o universal – segundo Abelardo - não pode ser nem uma Coisa e nem uma Voz, mas somente uma expressão. É evidente que minha contribuição científica a esta temática, a este assunto e a esta especialidade será praticamente nula. E o digo propositada e preventivamente, para que os etnólogos, os filósofos e os antropólogos não percam tempo pensando que estão diante de alguém que ainda continua lutando para reinventar o taquari ou para penetrar pelos fundos em seus clubes esotéricos. Menos ingênuo, sei agora que o saber – como o amor, como o élan vital e como o fogo-fátuo - de um momento para outro se desvanece, nos escapa, transforma-se num piscar de olhos naquilo que realmente é: nada. E sei também que mesmo a máscara, quanto mais invisível mais perigosa…


Apesar do calor continuo retirando lentamente esses rostos enigmáticos das paredes, como se estivesse desconstruindo o cemitério vertical de Marseille ou o de Santos. E como falar em «desconstruir» sem pensar imediatamente em Dèrrida? Cada uma dessas caras, tanto as dramáticas como as satíricas[2] têm um peso diferente, uma «estória», um valor agregado e um Nome que não me atrevo a revelar… Em seus olhos decodifico a fórmula de Sábato: “Desejo ser seco e não enfeitar nada. Uma teoria deve ser implacável e volta-se contra seu criador se este não trata a si mesmo com crueldade”[3]


Quando me canso desço os cinco andares, atravesso os terrenos baldios, as quadras silenciosas até entrar no Shoping-center para apreciar e colecionar máscaras vivas, móveis, de carne e osso que votam e que consomem. Máscaras que não posso pendurar nas paredes e que apesar de maquiadas e esquivas, são absolutamente iguais entre si: o nariz no centro de tudo como se o olfato fosse mais que o sabor e mais que a visão. Multidões de homens e de mulheres dentro e fora das vitrines, nas ruas, nos ônibus, na catedral e na Papuda, cuja profissão é «fazer-de-conta», cada uma mais ávida que a outra por seduzir e por mostrar de maneira «mais expressa» seu umbigo e seu disfarce. Borges, deixando-se enganar por Plínio, comete o mesmo erro daquele historiador afirmando que “cada homem tem um rosto que é único”. [4] Balela! E mesmo que isso fosse verdadeiro, a era dos clones virá para corromper qualquer traço de singularidade. Máscaras de carne, veias, pele… plásticas recém feitas, ainda frescas… uma cicatriz no lábio inferior, uma tonalidade anêmica, cosméticos contrabandeados, sombras, barbas, lentes de contato, lágrimas infames e programadas que se repetem secularmente em cada cara… E na penumbra das clínicas, os magos da estética fazem e refazem expressões, bustos e barrigas do populacho-invólucro. Reformam os olhos, diminuem as orelhas, abrem mais as bocas, retiram banhas e peles, deixam dura e rígida a máscara que ontem estava flácida… Mas mesmo assim os psicólogos seguem identificando sob a nova cara a máscara antiga que espia e que se lamenta cheia de ressentimentos e de vergonha. O operado é o espectro, o veículo e a vítima do chamado esteticismo, daquilo que Kierkegaard caracterizava como a atitude de quem vive o instante e que vive apenas para apressar o que existe de interessante na vida, esquecendo tudo o que é banal, insignificante e mesquinho. Em palavras mais compreensíveis: é o pavão-invólucro, o histérico que na apoteose da vaidade e da negação de si mesmo, se rende ao bisturi de um carniceiro e renega sua principal herança: a máscara e o corpo. [5] Só não se livrou dela antes por não ter podido… a substitui agora por outra que, segundo quem a produz, será menos monótona. “Il y a des visages plus beaux que le masque qui le couvre”[6] “je m’ avance masqué”;[7] “personne ne peut longtemps porter un masque”.[8] Citar exaustivamente a outros que não estão presentes e nem vivos, que categoria de máscara é esta? De que um escritor se esconde quando coloca entre suas idéias as idéias de outros? Eu me mascaro, tu te mascaras, o planeta é uma orgia de mascarados. Veneza e Pirenópolis! Mouros, judeus e mongolóides, mas a trama é perfeita. Basta ver que até o espelho joga o jogo daquele que serve. Por isso é bom e necessário lembrar Gogol e admitir que não é por culpa do espelho que temos uma cara errada!


O gelo de uma cara atormentada; a fúria e a mansidão do cio; a fragilidade de quem tem medo, inveja, cólicas… Saltei do trem ainda em movimento numa estação solitária e perigosa, como se tivesse ido até ali só para ver a máscara impávida e cruel de um soldado, colada ao vidro espesso da cabine telefônica. Sim, a máscara é uma espécie de cabine telefônica e de antena parabólica que capta, absorve e captura fluídos, peidos e manifestações subliminares da natureza.[9]


Um feto no meio do lixo radioativo, um abutre sobre a cabala, um candidato vitorioso no meio de uma imensidão de bandeiras sujas de sangue e repletas de slogans. A máscara-mãe e a mãe-máscara! O confronto permanente entre a cara que perece e a cara que dura… tudo isso porque como preconiza o Zen, “não deve existir amistosidade na procura da verdade do Dharma”·.


Na entrada do Parque da Cidade três ou quatro palhaços com o rosto oculto sob a policromia das máscaras. Sabe-se que um ser originalmente atormentado pelo remorso e pela culpabilidade se excita no anonimato e no disfarce. Precisa obsessivamente escamotear a própria cara e tentar inventar um outro Ego. Porém, faça o que fizer e seja qual for o seu artifício para despistar-se de si mesmo e para dissimular suas anomalias, acaba sempre por surpreender-se nu e traído diante do espelho da crueldade. Acaba por descobrir de forma irremediável que, como diz Cioran, “aquilo que parecia acumular todos os títulos da realidade não era mais do que um rosto. Um rosto? Nem sequer um rosto, apenas um disfarce, uma simples aparência, e que o destino não é mais do que uma máscara”.[10] Aos leões e aos dragões que pediam vítimas para saciar a fome, o «Criador» deu uma resposta fulminante: «alimentai-vos de vós mesmos»... O que os fez tomarem imediata consciência de que a vida era feita só de desejo, apetite desvairado, aparências e máscaras sem substância...


Depois de muito trabalho, de muita burocracia e de muita indiferença, eis que cada máscara está posta em um lugar estratégico. Consegui colocá-las em tal ordem que – sejam da Ásia da África ou da América - possam ver o «espectador» de todos os ângulos. Quem entrar aqui para vê-las, não apenas as verá, mas será igualmente visto por elas. É assim que idealizo a relação entre os «seres animados» e os «seres inanimados». Eu te olho de cá, tu me olhas de lá. Eu te reprovo de um lado, tu me reprovas do outro. Cuspo-te, me devolves a injúria. Seduzo-te, me seduzes. Expresso minha inveja e me devolves o veneno. Peidas diante da máscara mais imponente, mas teu peido não tem eco. Faço-me artificialmente simpático e imediatamente me imitas. Elogio-te antes de deixar a sala, e ouço-te murmurar que ficaste encantada... Odeias-me? Odeio-te! Ignoras-me? Nem tomo conhecimento de tua existência! Sei que é tudo representação, jogo, brincadeira, falsidade, e logo em seguida te ouço afirmar que na sua totalidade a existência é teatro, simulação, folclore. Assim, independente de quem se olha e de como se olha, um olho poderá neutralizar outro olho, uma crítica anular outra crítica, uma paixão defender-se ou cumpliciar-se de outra paixão etc., etc., de forma sucessiva e infinita para todas as necessidades psicopatológicas tanto daqueles que se exibem como daqueles que expiam espiando...


Enfim, o espetáculo está recomeçando, a passarela está livre e o futuro de nossas caras está lançado. Diante de todo esse horror, dessa dicotomia e de todas essas expressões satânicas, a única recomendação que me atrevo fazer aos espectadores é “que observem como nossos rostos parecem mortos e sem caráter diante destas criações obtidas com um pedaço de madeira e um pouco de tinta.”[11].


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[1] El libro de los muertos (anônimo) Producciones Editoriales, p.239, Barcelona, 1978.
[2] “O que faz o drama ou a comédia não são os fatos em sí, é a maneira diversa porque a humanidade os sente. A educação, o temperamento, a sensibilidade são o espelho humano em que os fatos se refletem. Num, dão o drama; no outro, a comédia. Com o que uns choram, os outros riem.” Schwalbach, em As duas máscaras, p.14
[3] Rosset, Clément. O princípio da crueldade, Rocco, p.7, Petrópolis RJ
[4] “Com eles morrem milhares de circunstâncias, milhares de lembranças; morrem lembranças da infância e morrem traços humanos, demasiado humanos.” J.L.Borges, in Sete Noites, Max Limonad Ltda, p.131, São Paulo, 1985.
[5] O corpo, como o descrevia o português mais pessimista que conheço “...essa coisa brutal cheia de veias, de nervos, tendões, glândulas e ossos, cheia de instintos e misérias; a carne que sua e cheira mal; que se deforma, se infecta, se ulcera, se cobre de gelhas, de pústulas, verrugas e pêlos, ee mole, viscosa, flácida...” Ver Albino Forjaz de Sampaio, Palavras Cínicas, Editores – Santos & Vieira, p.13 Lisboa
[6] Rousseau (Emile)
[7] Descartes
[8] Sénèque
[9] Segundo o dicionário de símbolos aberto sobre a mesa, “a máscara preenche igualmente a função de agente regulador da circulação das energias espirituais espalhadas pelo mundo. Serve como armadilha para impedir o vagar errante dessas energias. Se a força vital liberada no momento da morte fosse deixada a errar, ela inquietaria os vivos e prejudicaria a ordem. Captada na máscara, é controlada, capitalizada e em seguida redistribuida em benefício da coletividade.” Chevalier, J. e Gheerbrant, A. José Olympio Editora, p.597, Rio de Janeiro, 1989.
[10] Cioran, E.M. La tentacion de existir, Taurus Editora, p.174, Madrid 1979.
[11] Giovani Papini

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