A máscara, esse objeto de mil e um significados

Já na incubadora da maternidade as «novas almas» começam a construir duas coisas que lhes serão de extrema utilidade para toda a vida: um guarda-roupa e um guarda-máscara. Para cada ocasião de toda sua existência esse novo ser terá que, segundo as regras da moda e da moral, usar um determinado traje e uma determinada máscara. Assim como as roupas, as máscaras também influem no dia-a-dia, dão sucesso ou empurram seu usuário para o fracasso. Quê é a educação institucionalizada senão a transmissora do saber-vestir-se e do saber dissimular-se? Mascarar-se?

Num guarda-máscara popular podemos encontrar máscaras alegres, sóbrias, de fúria, de depressão, de otimismo. Máscaras Zen, de vítima, de apaixonado, de inocência, de carisma, de introversão, de desejo, de orgasmo, de sedução. Máscara de professor, de intelectual, de padrinho. Máscara de responsabilidade, de filantropia, de ditador, de democrata e mesmo de iluminado.

Esses armários são tão variados e tão importantes para a sociedade que se pode pensar que até mesmo a luta social nunca foi entre classes como queriam os marxistas, mas fundamentalmente entre máscaras, como o sabe muito bem a burguesia.

No Hipócrita feliz de Max Beerdohm, vemos que o uso prolongado de uma mesma máscara acaba por modelar o rosto de carne e inclusive a transformar o caráter de quem a usa. Defendendo a mesma idéia, Papini especula sobre a possibilidade de que um colérico que usar durante muitos anos uma máscara de mansidão e de paz, acabe por perder as características fisionômicas da ira e, pouco a pouco, também a predisposição de enfurecer-se.[1]

E não deveria ser novidade para ninguém que esses tipos, leia-se essa espécie, que sempre se consideraram os donos absolutos da terra e de tudo o que existe nela de vivo e de morto, historicamente lançaram mão da máscara para driblar e enganar os seus contemporâneos e a si mesmos.

Não deveria ser novidade para ninguém que esses tipos que se dizem mais inteligentes que todos os outros animais e feitos à imagem do «criador», precisam inventar os mais variados estilos de máscaras e de disfarces para negar-se e para tornar suportável o asco que sentem por si mesmos e pelos outros, com seus problemas psicológicos, existenciais, sociais e culturais.


Os homens - com suas necessidades compulsórias de dissimulação, isto é, de desconstruir o rosto que têm e de compor um outro de acordo com sentimentos que quase nunca conseguem expressar - quando mascarados sentem-se mais a vontade. Podem inclusive – dando a palavra outra vez a Papini - visitar um amigo em desgraça sem a necessidade de fingir, com a própria fisionomia, uma dor que não sentem.

Mas, como não há remédio para a obrigação de viver, mesmo sob cada máscara subsiste sempre o mesmo resmungo nietcheniano e melancólico: “Ah, se eu pudesse ser outro! Mas, não há esperanças. Sou o que sou. Como poderia libertar-me de mim próprio?”.

E o truque da máscara é colocado em prática em quase todos os momentos do cotidiano e nas mais variadas situações naturais da vida, principalmente naquelas onde a situação exige uma cerimônia funerária, um ritual de cura, uma orgia de iniciação, nas festas e nos porres carnavalescos…

Quem passar uma semana no Museu do Cairo se assombrará no meio de tantos sarcófagos, de tantos rostos e olhares do além. Os egípcios – esse povo que todos se sentem obrigados a citar sem saber muito bem a razão - fizeram durante muito tempo uso das máscaras funerárias para conduzir o espírito do morto ao seu lugar de repouso definitivo. Essas máscaras geralmente eram feitas de tela e cobertas de gesso, com exceção das que eram feitas para os nobres, que continham ouro e prata. E eram colocadas diretamente sobre a cara do defunto ou então enterradas ao lado do corpo, amarradas ao caixão ou talhadas na tampa dos sarcófagos, exatamente sobre a cabeça. A crença milenar de que a alma se refugiava na cabeça, constitui a base da lógica das máscaras funerárias, já que estas eram usadas para dar refúgio à alma dos mortos, protegê-las dos espíritos malignos e perversos durante a marcha para o além. Também tinha a função de conservar a imagem do morto entre os seus familiares, amigos e admiradores, mais ou menos o que se faz hoje quando se integra ao túmulo uma foto de seu ocupante.

Na Roma antiga (os romanos eram especialistas nessas bobagens) as máscaras também serviam como recordação dos antepassados e eram exibidas em cerimônias religiosas. Até o século XVIII ainda se conservava o costume de enfeitar manequins que representavam a realeza e a nobreza, com máscaras pintadas e com cabelos humanos. Antes do aparecimento da fotografia, portanto, as máscaras constituíam uma forma comum de retratar as pessoas que já não estavam mais neste mundo. Atualmente o museu de cera de Londres é uma evidencia de que esse costume ainda não deixou de ser praticado.

A máscara representando uma caveira também era associada e usada nos rituais funerários de diversos povos. Todo mundo já ouviu falar do Dia dos Mortos no México, exatamente por esse exotismo.[2] Entre os melanésios – por exemplo - era costume usar a caveira para fazer moldes de areia, sobre os quais se realizava pinturas estranhas e misteriosas de alguma maneira já relacionadas com o defunto.

Festas e rituais pagãos nos quais se usam máscaras ainda sobrevivem em praticamente todo o mundo. Os Druidas com seus rituais milenares continuam homenageando a Samhain (Senhor dos mortos), que sempre aparece representado nas máscaras do dia das bruxas (halloween).

E as máscaras invadiram os hospitais, as salas cirúrgicas, os consultórios dos dentistas e as casas de curas milagrosas. A efígie do terapeuta de um lado e a do paciente de outro ilustram efetivamente o teatro da terapia e a pretensão da cura. Quem observar verá que entre os dois existem outros dois e que entre os quatro existem outros quatro… assim infinitamente.

Seres vindos de um lugar estranho ao rito da cura, esses espectros e esses fantasmas assumem dentro dela a função de despistar tanto a essência do terapeuta como a essência do doente e da doença.

Eu me mascaro para te ouvir e tu te mascaras para relatar-me coisas que nunca fizeste!

Protejo-me de ti para exercer minha profissão, tu te escondes de mim para preservar tua enfermidade!

O terapeuta, o sacerdote e o bruxo são o engendro bruto do político, do senador e do ministro, e eles sabem como fazer-se temer, pois como lembrava Nietzsche, são eles que mudam a direção e o rumo do ressentimento…

Sim, a máscara, principalmente a terapêutica, é exatamente isso que os etnólogos ainda não se atreveram a pensar: uma droga contra todo tipo de ressentimento. Vejo em minhas anotações que para Covarrubias, o segredo da máscara é que ela possui um estranho poder de sugestão sobre a imaginação, chegando a ser experimentada como a síntese e a essência da deidade, do demônio, morto ou herói que se trata de representar o que, por si só, simboliza a proteção contra diversos tipos de doenças. A vergonha experimentada no corpo enobrece-se com a máscara da doença, porque sob a cobertura de enfermidade floresce um excesso de sensualidade.[3]

As crianças chinesas e birmanesas – por exemplo - usavam máscaras de sarampo para afastar o demônio que causava a enfermidade e máscaras de cólera durante a epidemia.

Em outras regiões do mundo, nos rituais de cura, o médico ou o curandeiro também usava uma máscara que representava a enfermidade. Em Sri Lanka, onde este costume era bastante aperfeiçoado, os feiticeiros possuíam 19 máscaras, cada uma representava os 19 demônios que, segundo a farmacopéia oficial, causavam as doenças mais graves e mais temidas. “Alguém deve ser a causa do meu mal-estar!” Esta maneira de discorrer é própria de todos os doentes (e de todos os mascarados), e é tanto mais quanto mais oculta esteja para eles a verdadeira causa do seu mal.

“Eu sofro, alguém tem a culpa” assim discorrem todas as ovelhas (mascaradas). E então, o pastor (mascarado) lhes responde: “É verdade minha ovelha; alguém tem a culpa; mas és tu mesmo; os teus pecados são a causa de teu mal.”[4]

Entre os ciganos a máscara tem uma função essencialmente curativa. Fabricam uma máscara especial e exclusiva para cada doente que está sendo tratado.

“Além da fascinação que essa máscara pode exercer sobre o individuo, o feiticeiro cigano conta também com a docilidade, a passividade e o impacto psicológico que pode ter a elaboração enigmática do objeto na presença de seu futuro possuidor. A máscara é a materialização do fim a atingir e apresenta-se como um enigma do qual só o paciente pode possuir a chave. Uma vez terminada, cabe ao seu proprietário fazer o restante se quiser.”[5]

Segundo as crenças desse povo nômade e apátrida a máscara teve seu início no cosmos e por isso sua fabricação deve sempre começar com sete bolinhas de argila que representam sete planetas: Júpiter, Saturno, Urânio, o Sol, a Lua, Marte e Mercúrio. Depois disso o feiticeiro recolhe pedaços de unhas e de cabelos do doente que se está querendo curar e os introduz na argila para dar uma identidade à máscara.[6] Quando pronta, os feiticeiros chamam-na, conforme o caso, de homem do repouso ou homem da sabedoria. Após a realização do ritual e com o doente já curado (?) é conveniente destruí-la, porque “evocando constantemente o passado, provocaria uma outra forma de neurose”. O paciente segue as orientações do feiticeiro e num dia de chuva, enterra-a no jardim ou debaixo de uma carroça, para que a chuva volte a reintegrá-la ao solo. Parece evidente que os ciganos sabiam que o inconsciente (e isto Freud não disse) é um depósito de máscaras ao qual o sujeito recorre segundo as circunstâncias pelas quais está passando, e que a neurose é proveniente da sucessiva equivocação na escolha do disfarce adequado e no seu uso.

Sabe-se também que foi o Dr. Charles de Lormé (médico de Luis XVII) quem inventou a máscara usada então nas epidemias. Tratava-se de uma máscara fechada com uma placa de cristal para os olhos e um recipiente cheio de essências aromáticas para meter o nariz. Quem a usava estava protegido tanto dos germes como do fedor. Na medicina moderna os operadores, os ginecologistas, os dentistas e todo o corpo médico adotam o uso de máscaras de pano, papel ou de plástico que cobre basicamente o nariz e a boca. O uso da máscara cirúrgica foi introduzido na prática médica pelo alemão J. Von Mikulicz-Radecki em 1843, no período em que dirigia a cátedra de cirurgia em Konigsberg. No fim da década de 20 o uso da máscara cirúrgica de gaze já estava completamente incorporado no universo médico, e era obrigatório para todas as pessoas que estivessem no cenário da cirurgia. Foi ela que inspirou a construção da máscara de filtro que mais tarde seria usada contra gases nas guerras ou em outras situações ou atividades insalubres.

Historicamente o mundo do crime também tirou proveito das máscaras. Os bandoleiros medievais, os membros da Ku-Klux-Klan, os ladrões de cavalos, os terroristas e os verdugos das mais diversas categorias.

As “Sociedades Secretas” (quando se fala em coisas secretas sempre se está insinuando o uso de um disfarce) sempre usaram algum tipo de máscaras, e não com a finalidade apenas de disfarçar-se, mas também de vencer o adversário pelo terror. Os torturadores das ditaduras militares latino-americanas, como os da famosa Sociedade Secreta EKPO (da Nigéria), conhecida mais comumente como a Sociedade dos Vingadores ou dos Destruidores, sempre se apresentavam mascarados diante de suas vítimas. Os malfeitores do arquipélago de Birmarch temiam o espírito DUK-DUK, que era personificado através de uma máscara cônica de um metro e meio de altura, cujo rosto era diabólico. Outros exemplos como estes, onde a máscara aparece como instrumento de ligação entre o consciente e o inconsciente; entre o verdugo e a vítima; entre o real, o imaginário e o simbólico; entre o sentido e o intuído, ou de interferência direta sobre forças ligadas à demonologia e à morte, evidenciam o quanto a máscara atua psicologicamente sobre seus usuários e sobre aqueles que a cultuam.

Enfim: a máscara é o próprio Lúcifer! Mas por quê? Por que ela, na grande maioria das vezes é uma representação de entidades demoníacas? Resposta: porque os homens sentem uma atração inata, cromossômica e genética pelo diabo, por essa imagem que simboliza todas as delícias da transgressão. Sim, o diabo representa todas as forças que perturbam, que inspiram cuidados e que enfraquecem a consciência fazendo-a voltar-se para o indeterminado ou para o ambivalente. E também, porque, aqui entre nós, os homens se parecem muito mais ao «diabo» que a «deus».

Como a arte não se cansa de plagiar a vida, as máscaras não desistem de plagiar as caras, as expressões e o desvario dos homens. Por mais caótica, anárquica e abstrata que pareça ser a arte é sempre o resultado de uma lembrança, um fragmento de memória daquele que a produz. E chamo arte a absolutamente tudo aquilo que não tem utilidade, como o teatro, o cinema, a pintura, a poesia etc.

Acredita-se que foi o poeta Tespis (século VI a.C.) quem criou a tragédia e quem inventou a primeira máscara teatral, que foi confeccionada com linho colorido e que cobria toda a cabeça de quem a usava.[7]

Sob a máscara esta Um, mas que também é Outro. Estava definitivamente lançada a imagem e a percepção esquizo nos palcos (e na poesia).

A máscara deixa as grutas e as selvas anímicas para ganhar o universo da cultura e do intelecto, e já não é como dizia L. Strauss, simplesmente o que representa, mas também o que transforma, isto é, o que elege não representar. Como um mito, uma máscara nega tanto quanto afirma, não está feita somente daquilo que diz, mas também daquilo que exclui.[8]

Na Idade Média os Sete Pecados Capitais eram personificados com máscaras grotescas, quase sempre vermelhas, com chifres, dentes felinos, focinho e orelhas de animais que vomitavam fogo e fumaça diante do populacho animista e boquiaberto.

No século XV, quando a Commedia del Arte Italiana se estendeu por toda Europa, os atores se apresentavam disfarçados sob peles e máscaras. As máscaras negras de Arlecchino e da Colombina, que cobriam apenas os olhos, inspiraram o nascimento de personagens que hoje são conhecidos por Batman, Batgirl, Robin etc.

Também na Ásia o teatro oriental guarda certa semelhança com o teatro da Grécia Antiga quanto ao uso de máscaras e disfarces suntuosos. Na China, na Ópera de Beijing e também nas festas populares os atores usam máscaras brilhantes enfeitadas com jóias e com prendas na cabeça. Nas danças do Leão e do Dragão os atores itinerantes atuam com máscaras estilizadas que possuem mandíbulas móveis. Nos espetáculos de dança de Java, os dançarinos usam máscaras de madeira chamadas Tupeng, que são decoradas com crinas de cavalos. E no Tibet, a Dança do Tigre Vermelho (para exorcizar demônios) é realizada com máscaras de tecido e papel, algumas vezes de cobre dourado e quase sempre representando caras demoníacas.

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[1] Papini, Idem p.67.

[2] “É famosa a máscara de mosáico de jade, com olhos de conchas e iris de obsidiana usada em rituais funerários. Foi descoberta em 1952 e cobria o rosto do personagem político ou religioso enterrado na cripta do Templo das Inscrições, em Palenque (Chiapas) Méxixo. É provável que essa máscara, como todas as outras do gênero, foi utilizada com o desejo de conseguir a imortalidade, como nas esculturas egipcias, greco-romanas, orientais e sul-africanas (…) No mundo pré-hispanico existiu um sentimento profundo de culto aos mortos e em suas cerimônias funerárias, a máscara tinha uma importância especial. No México o cachorro tinha a missão de guiar o defunto pelo mundo do desconhecido, usando uma máscara de xoxotl, que lhe dava poderes sobrenaturais.” Rubio, V. Idem.

[3] D’ Épinay, M. L. Groddeck, A doença como linguagem, Papiros Editora, p.72, Campinas 1988.

[4] Nietzsche, F. Idem, pp. 127, 128.

[5] Derlon, P. Tradições ocultas dos ciganos, DIFEL, p.134, SP, 1975

[6] Curiosamente, essa máscara que deveria refletir a harmonia interior, é na maior das vezes feia, assimétrica, sempre masculina e, ocasionalmente, com barba, sendo obrigatórios os bigodes. Idem.

[7] Ah… eu tinha certeza que na máscara havia alguma coisa dos poetas! Que eles deveriam ewstar de alguma maneira envolvidos com esse engendro. Por que? Porque a poesia em si já é uma máscara, um disfarce, um escudo de letras e de histerismo. Ela, como a máscara, adora turvar as águas para parecer mais profunda e misteriosa (ver Zaratustra)

[8] Strauss, L. La via de las máscaras, Siglo XXI Editores, p.124, México 1981.

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