Historiadores e Mascarados

Antes de todos os seres o que existia era a máscara. Depois veio o homem, viu que ela servia perfeitamente em sua cara e que fazia um grande bem para seu caráter de renegado. Portanto, quem pensar que foram nossos senadores, nossos comerciantes, o Joãozinho Trinta ou o clero contemporâneo que introduziu a máscara no cotidiano, está redondamente enganado. Segundo minha intuição e minhas reflexões este objeto macabro, catatônico, cínico e imóvel foi engendrado ainda antes de nossos primeiros parentes lá na penumbra das cavernas, no momento exato em que se necessitou, pela razão que for teatralizar, dramatizar, escamotear ou ironizar a existência. Portanto, num primeiro sentido e numa visão bem mais simples do que a dos «especialistas», a máscara foi o primeiro instrumento do mau caratismo universal, a origem de todas as mistificações, de todos os disfarces e, obviamente, a mãe de todas as metafísicas. Num segundo sentido, por maior que seja a chamada «compreensão humanística» dos pesquisadores, a «idealização-nativo-ecológica» dos colonizadores e a mistificação gratuita dos artistas e dos pastores que lotearam as tribos e as aldeias do globo, a fabricação e a utilização real das máscaras – da Terra do Fogo ao Himalaia -, longe de ter razões e significados complexos, profundos, místicos, totêmicos, esotéricos, mágicos, sagrados etc., era apenas um objeto lúdico. Um objeto com o qual os aborígines e os nossos ancestrais se divertiam, travestiam, disfarçavam, enganavam, passavam o tempo e se assustavam mutuamente, procurando assim amenizar a solidão silenciosa das selvas. E se não fossem as necessidades inconscientes dos pesquisadores e os interesses escusos da confraria etnográfica, talvez não se tivesse chegado a tal grau de mistificação tanto do uso como do papel e dos poderes desse objeto, e a máscara então, longe de ser tudo o que dizem que é, continuaria sendo apenas uma máscara, um brinquedo, um jogo infantil cuja utilidade não transcenderia àquela que os venezianos e os brasileiros lhe dão durante os dias de carnaval.

Mas atenção, esta é apenas a história que gosto de contar às crianças e para mim mesmo, pois a história que os PhDs contam é outra. A deles é uma história muito mais «complexa», muito mais «séria», «lógica» e «sobrenatural». Em síntese, a história dos acadêmicos é profunda e melancólica como um vício e eles vivem e precisam dela como os cupins vivem e precisam das casas antigas a apodrecidas. A mim – como a Canetti - isto provoca nojo. “Odeio esse respeito dos historiadores pelo sucedido só porque ocorreu, suas falsas regras deduzidas a posteriori, sua impotência que os induz a prostrar-se diante de qualquer forma de poder…”

Quem já transitou de um extremo a outro do planeta – da Bolívia à Indonésia; da Austrália ao México; pela Guiné, Costa do Marfim, Nepal, Marrocos etc. - se não for cego e distraído, com certeza deparou-se com os mais variados, curiosos e interessantes tipos de máscaras. Algumas cerimoniais, outras ligadas ao teatro, às pompas funerárias, ao «bem» e ao «mal», à beleza, ao crime, ao erotismo, à fome, ao medo, ao turismo e, basicamente, à esperança de transcendência. Sempre expostas na penumbra dos museus etnográficos, nos umbrais dos mercados, nas galerias de arte, nos estúdios privados dos colecionadores ou simplesmente nas mãos de um vendedor ambulante…

Dizem que foi numa visita ao Museu Americano de História Natural de Nova Iorque, no setor dedicado aos nativos da Costa Norte do Pacífico que Lévi-Strauss, - autor de Tristes Trópicos, O pensamento selvagem, O cru e o cozido etc. - fascinado pelas máscaras e por outros instrumentos produzidos por aquele povo, previu que não estava longe o dia em que acervos como aquele deixariam de estar em museus etnográficos para ganharem lugar privilegiado nos museus de belas artes… No que diz respeito às máscaras, a «profecia» de Strauss já está praticamente cumprida. Cada dia mais as máscaras migram do ambiente «sagrado» da etno-antropologia para lugares de destaque nos altares «profanos» da arte, nas paredes luxuosas dos castelos e até mesmo nos mezaninos dos bordéis, fazendo-nos lembrar – como dizia Oto Bihalji-Merin - que a máscara é o símbolo de alienação mais antigo que se conhece.[1]

Num mundo marcado fundamentalmente pela hipocrisia e pela falsidade, tanto ideológica como moral, a máscara depois de tudo, assume um papel de incomensurável curiosidade, já que passa a ser o signo mais sólido e material de uma «falta», de uma doença do caráter, de uma anomalia da personalidade que insiste em convencer o individuo que seria melhor tentar ser Outro, passar por Outro ou por aquilo que ele não é. Isto porque, “O homem que se coloca uma máscara – escreve Rubio - transforma, mesmo que seja temporariamente, seu ser e se põe em comunicação com um outro mundo. Sai de sua insignificância, de seu anonimato, de seu permanente desamparo. Se converte em um ser superior, poderoso e temível. Exerce de repente, um poder inesperado sobre seus semelhantes, que o eleva sobre eles…”[2] O anonimato e a nulidade, seja lá no coração da selva ou aqui no meio dos arranha-céus, fragilizam humilham e envergonham os indivíduos desmascarados, o excluem de todos os banquetes e os impedem de se integrarem ao rebanho, reduzindo-os a meros espectadores sem voz, sem rosto e acuados pela morte. E é nesse momento que a máscara surge como o remédio que tanto procurava Macbeth,[3] e é daí que se deduz que a máscara nasce intimamente ligada à idéia e à paranóia da morte, pois “vem a ser o rosto petrificado, imóvel e eterno daquilo que foi vivente, frágil e de rosto expressivo.” (S. Toscano).

A máscara, talvez, tenha sido a trilha por onde avançou a fotografia e o cinema, já que ambos também pretendem eternizar o efêmero e tornar infinito o finito. Retratar ou esculpir a cara do morto, a face de um «deus» ou de um «demônio» pode traduzir a tentativa inútil e vã de alterar o fatalismo do tempo, o tic-tac do relógio e a perenidade intolerável da carne e da matéria… O que se pode dizer de quase todos os tabus e mitos, esses meteoritos ficcionais que temperam e envenenam as culturas já que “nem envelhecem nem decaem, e que foram engendrados para aliviar o temor ao fim último que muito preocupa os homens e para dar-lhes a esperança de uma duração infinita” (E. Becker). Através da máscara (ou da histeria e da dissimulação) o “homem se liga a uma energia extra-humana que circula pelo universo e arranca dela sua capacidade para modificar a realidade e transformá-la conforme suas necessidades. Seus ancestrais e parentes já falecidos e as figuras simbólicas de seu folclore são parte desse mundo espiritual” (F.Monti). Evidentemente que todo esse festival de transformações materiais e de relações com o mundo sobrenatural, intermediadas hipoteticamente pelas máscaras, só acontece nos abismos inconscientes do usuário, na sua fantasia praticamente ainda uterina e no seu desespero maníaco, para não dizer interesseiro. Sim, interesseiro, porque, - como reza o Bhagavad-Gita: “a maioria dos homens cultuam os deuses na expectativa de serem bem sucedidos nos seus empreendimentos mundanos.”[4]

O que deve acontecer nos porões tenebrosos da consciência humana quando o homem coloca sobre seu rosto esse outro rosto talhado na madeira? Essa cabeça dicotômica, essa cara morta, esse truque contra si mesmo, esse pedaço de tronco mutilado pelos canivetes? Por que esse simples ocultamento faz com que o sujeito “possa agir com mais competência, tranqüilidade e responsabilidade”? (Laing)

Daí a importância dos disfarces para os Césares quando queriam passear pelos prostíbulos; daí a capa, o silicone e o batom dos travestis; o capuz dos torturadores, os delírios de todos os tipos, Porque é a mais pura verdade que nossos rostos «normais» parecem mortos e sem caráter diante dessas criações obtidas com um pedaço de madeira e de laca (Papini). E é por isso que o mundo poderia aceitar a sugestão desse italiano e transformar a máscara numa peça facultativa do vestuário, como as luvas, o chapéu, a gravata, as meias, as cuecas etc. Desfile de modas! Desfile de máscaras! E depois, uma máscara fabricada sob nossa orientação, sob medida, nas cores que mais gostamos, seria sempre mais bonita, sensual, sincera e poderosa que a maioria das fisionomias que conhecemos e que temos a obrigação de suportar. E como não só nossa moral, mas até mesmo nossa personalidade é transitória, não seria difícil «encarnar» a nova feição. É provável – voltando a Papini - que um homem que andasse durante dez anos com a mesma máscara de Rafael e vivesse entre suas obras primas, se converteria facilmente em um grande pintor, o que despertaria no mundo (principalmente entre os políticos) a idéia de criar fábricas de talentos.[5]

Todos os documentos falam da existência da máscara prósopon-rosto na pré-história e como um instrumento mágico, de possessão, de poder e de invocação dos espíritos subterrâneos para se conseguir através deles manipular e alterar a realidade. Mais tarde, para esses fins, inventou-se o dinheiro, a cruz, o pelourinho, a guilhotina e o teatro da política.[6] Sim, a máscara, como a política partidária, também nasceu associada à necessidade egoística e inata de Poder. Tanto é que o «construtor» de máscaras e aqueles que a manipulam sempre ocupam um lugar de destaque dentro da comunidade, do gueto ou da seita.

Podendo ser a face divina, mas também a face demoníaca, a máscara inaugura claramente um pensamento dualista, esquizóide e maquiavélico, além de explicitar a preferência dos selvagens pela irracionalidade e pelas idiotices do além. “La sed de poder y de domínio – escreve Cioran - tiene demasiada garra sobre sua alma: quando sea dueño de tudo no lo será ya de su fin.”

Dançar a vida mascarados e embriagados, principalmente antes de ir à caça, porque no animal morto pode estar a doença que destruirá o caçador. Vivas ou mortas as caras dos animais serão reproduzidas em troncos, em pedras, em ossos para aplacar a angústia da culpa nos silvícolas, para se reconciliar com a espécie do animal morto. De uma maneira ou de outra, já reconheciam que a morte está irremediavelmente impressa na vida.

Enquanto tento coordenar as idéias e rabiscar as frases de maneira pelo menos compreensível, levanto os olhos e as vejo todas geometricamente dependuradas na parede com os olhos febris cravados sobre meu rosto, sérias, sem se importarem para nada com o que eu e outros debilóides pensamos e dizemos delas. Uma ou outra parece dedicar-me uma atenção especial, como se quisesse convencer-me com o pensamento de Lautréamont de que “nada é motivo de seriedade neste planeta grotesco e soberbo.”

Interrompo a escrita para olhá-las melhor: Não se parecem em nada com a “realização visual de dupla existência mais perfeita que possui o homem” – como pensava Sorel. Mais bem, as percebo como aquilo que Marx dizia das religiões: “pequenos sóis ilusórios que se movem ao redor dos homens enquanto estes não conseguem girarem em torno de si próprios”…

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[1] In Rubio, V.J. Máscaras, la otra cara de México. Universidad Nacional Autonoma de México/UNAM 1978, México DF
[2] Idem
[3] Macbeth – Não podeis ministrar algum remédio a um espírito enfermo, e da memória arrancar-lhe uma dor enraizada, apagar-lhe do cérebro os escrúpulos gravados? Não conheceis acaso algum antídoto capaz de extirpar de um peito inquieto a matéria daninha que pesa, insuportável no coração?
Médico – Eis um caso que só o paciente pode ajudar-se (Shakespeare)
[4] In: Huxley, A. A filosofia perene. Civilização Brasileira, p.317, RJ. 1973.
[5] Papini, G. GOG, Coleção Nobel, p.66 (?)
[6] “…e por aí vai o mundo do espetáculo, exercendo sua influência sobre o mundo da política (…) Quantos dirigentes, particularmente no terceiro mundo, se comportam como Rolling Stones da política ou Cassius Clay do poder? Certos comícios já se assemelham a festivais, ou recitais, com a mesma dose de ilusão e de mistificação (…) Há também o artifício da maquilagem, as máscaras e pinturas que modelam os rostos. Com os pós e os pincéis de Elizabeth Arden, de Max Factor. Com a genialidade dos irmãos Westmore em Hollywood, que hoje revelam que o sorriso de Clark Gable era feito de dentes postiços e os cachos de Shieley Temple pertenciam a uma peruca. Da mesma forma Rodolfo Valentino era míope, baixinho, franzino e careca.” Schwartzenberg, R.G. O Estado espetáculo, DIFEL, pp.150,151, RJ. 1978.

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